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quinta-feira, 21 de abril de 2016

O samba da noite

o corpo jogado no sofá, aprisionado em sua própria solidão. Mas a mente sempre esquecida de ser una, e dividia-se em mundos e realidades diferentes, sempre fantasiando o gosto, o rosto, o sexo, a pele, o riso de outras vidas. A boca gostava da cerveja, mas hoje a noite pedia vinho, e ela, sendo da bondade que era, sempre concedia aos desejos noturnos.
Tinha medo do frio que lhe servia de cobertor, mas já não sabia como se desvencilhar dessa pele. E a sede das vidas continuava lhe corroendo, atravessando o corpo, a alma, buscando sempre um novo rio onde dar vazão. A sede doía aos ossos, badalando a mesma melodia, lhe chamando para ir ao mundo, se derramar, deflorar florestas virgens, correr os pés na areia inexplorada.
Nunca tinha ido. Ás vezes fazia que ia, mas no fim ficava. A língua parecia já saborear alguns gostos através de partículas trazidas pelo ar. Catava, à toda custa, e ainda assim à sorte, tragar pelo vento a essência do amor.
Mas era amor o que queria? Talvez nem fosse. Pelo menos não o amor como lhe diziam que deveria de ser. Sentia vontade era de criar coisa nova, de correr, de desbravar. Amor para ela tinha cores de outro nome. De certo que não era o que sentia agora - isto estava mais lá para melancolia -, mas um dia queria senti-lo.
Era pra cair no mundo. Tal qual as ladeiras de olinda, descer correndo seu coração no compasso do frevo! Ir sorrindo pela tarde azul, amarela e vermelha. Sem medo do que viesse, sem prisão que lhe pesasse os pés: só o calor do frevo subindo pelo corpo que se agita pela rua. Beijar a boca do acaso, rir do joelho ralado e beber a cerveja no copo do destino.
Quer fugir de que? Não sabe, e parece, pela velocidade da fumaça que escapa de seu cigarro, que também não deseja saber. Mas sabe que quer ir. O pé já se move sozinho, caçando pelo chão caminhos possíveis. Quer amar também, só não sabe a quem. Talvez a fuga e o amor sejam ponto de encontro de um alguém. Seja estrangeira ou si mesma.
Muda o cenário. O rosto que enfrenta no espelho usa o lábio cor carmim. O olho, qual a Vênus, não escolhe cor para definir-se, põe fantasia em tudo que lhe exija explicação. Escolhe a indecisão entre beber cerveja ou vinho, amanha vai ter ressaca, já sabe. Prefere ter certeza na ressaca que entre as bebidas. Vai de vale-ressaca mesmo. O cigarro que fuma é mais pros dedos que pro pulmão, mais pro charme que pra paciência. Quer atenção, mas não qualquer uma. Quer que algum olho desavisado lhe ache na estranheza, nas sombras, na quietude, lhe veja a fumar cigarro, revezar cerveja com vinho enquanto escreve poesia num bar. Quer que alguma mente por trás dos olhos desavisados saiba que ali encontrou certo tesouro muito difícil de achar, e que diante de tal descoberta, saiba se aproximar: não com interrogatórios, não com elogios, não com holofotes. Mas que saiba pedir vinho, bebericar sua cerveja sem pedir, ficar em silêncio, dizer pelo olhar. Quer alguém que saiba falar aquela língua que ela mesma inventou, que saiba se comunicar no mais ínfimo dos detalhes, que saiba dar significado e importância a tudo. Que não dependa de palavras para falar, mas que se precisar usa-las, saberá fazer sabiamente. Vai pedir alguém que tenha mais mistério nos olhos do que cabe entre o céu e terra; que tenha sorriso e o distribua pelo mundo.
Ela sabe que o amor tem gosto de flor e cheiro de terra molhada, numa tonalidade hortelã. Ela também sabe que só quem decifrar tal definição merece usa-la, seja para si ou para dedicar a outrem. Os pés querem descer pela Olinda, mas o coração ainda se agarra ao blues com vinho, à MPB com cerveja. Às vezes ela só quer café, e as mãos trocam a distração do cigarro pela firmeza de um livro. E ela sabe de tudo isso, mas quer alguém que saiba ler tudo isso também.
O frio passa, porque assim como a solidão, só se apega à quem não lhe apresenta resistência. Decide caminhar. Enquanto fazia sua cena demonstrando a silenciosa linguagem que sua alma falava, não encontrou ali leitor eficiente, então decidiu caminhar. Nem sempre o que se espera da noite acontece, nem sempre o queremos obter é suficiente. Às vezes, quando a noite chegava naquele discreto limbo entre um dia e o outro, Anita percebia que pouco importava quem a lesse ou não. Sua linguagem não era feita para quem a lia, mas tão somente marcava com símbolos o seu prazer em escrever através do corpo nas linhas invisíveis da vida.
A boca ainda era carmim. O corpo ainda era belo. O rosto ainda era firme. A não necessidade de leitura não anulava os olhos que a ainda a buscavam. Não era porque não sabiam ler que não tentavam.
Tentavam muito. Mas para Anita não fazia grande diferente. O prazer da dúvida ainda é mais gostoso que a certeza da ressaca.